Violência nos garimpos da Amazônia na narrativa de Maugê – 2

19
Feb

A gente ia de transporte lotação em umas vans que fazem este trajeto. A Fátima cobrava adiantado a passagem de ida e volta. Na primeira viagem ela cobrou 400 reais de cada uma e eu só consegui ganhar 250 porque estava bem fraco. Mesmo assim, eu continuei indo naquelas lotações. A gente ia na quinta-feira de tarde e retornava na segunda de manhã. Havia todo um esquema para a gente chegar e trabalhar sem ter problema com a entrada e a saída. A gente se passava por sacoleiras para não chamar a atenção. Mas, eu acho que todo mundo sabia que a gente estava indo para prostituição.

Numa das viagens para estas zonas de garimpo na zonal 9 da Guiana, sempre nas áreas indígenas, a Fátima perguntou se eu não queria seguir viagem até Paramaribo, no Suriname. Eu e minha amiga aceitamos mais por aventura, para conhecer outros lugares. Foi uma viagem muito difícil. Havia partes que era por terra, e outras em barcos pequenos. A Fátima tinha todo um esquema com estas viagens. Passamos por dentro de muitos garimpos para deixar mantimentos e peças mecânicas que a Fátima vende e entrega nas “encomendas”[1].  Demoramos 14 dias para chegar numa vila garimpeira no município de Albina, perto de Paramaribo. Neste lugar os garimpeiros eram praticamente todos brasileiros. A Fátima tem muitos negócios com eles e nos apresentava como suas “secretárias” e os homens já sabiam o que significava este código. Logo que chegamos, entendemos que estávamos com ela como uma espécie de “presente” que ela levava para os garimpeiros que negociavam peças e outras mercadorias com ela. Quando os encarregados vinham receber a mercadoria e pagar, ela nos oferecia para eles. No segundo dia, no final da tarde, chegaram 15 encarregados e depois de negociar com a Fátima, entraram no quarto onde nós duas estávamos e tivemos que servir os 15 homens de uma só vez. Foi uma das piores noites da minha vida. No dia seguinte eu não conseguia nem me levantar. Meu corpo inteiro doía. Minha amiga teve febre, de tão machucada que ficou. Depois deste segundo dia, todas as outras noites foram iguais. No sábado os garimpeiros chegaram à vila e a Fátima nos ofereceu para vários grupos. Ela chamava de sexo grupal, mas, aquilo era estupro coletivo porque era eu sozinha para dar conta de mais de 20 homens numa noite. Passamos uns 15 dias neste lugar e não teve um único dia que não fosse estuprada pelos amigos da Fátima. Depois chegamos a Paramaribo para as últimas entregas da Fátima, mas, lá ela não nos ofereceu para seus amigos. De lá viemos embora por outros caminhos. Demoramos menos para chegar na Zonal 9 da Guiana e ainda ficamos uns 5 dias em postos de prostituição antes de chegar em Lethen. Todos estes postos ficam em áreas indígenas. Alguns garimpos são administrados pelos indígenas. Outros por brasileiros. Tem muitos do Maranhão e do Pará. A Fátima fez parada em 5 garimpos dos brasileiros para nos oferecer para os encarregados. Eles nos deram alguns “presentes” que eram algumas gramas de ouro que tivemos que repassar tudo para Fátima. Chegando em Boa Vista, ela disse que iria negociar e dividir entre nós. No final, ela nos pagou menos de mil e quinhentos para cada uma. Não deu nem para pagar as medicações que precisamos para recuperação das infecções que adquirimos na viagem.

Fazia tempo que meu irmão não aparecia. Num final de semana ele ligou para meu celular e disse que estava numa vila chamada “fofoca do cavalo” onde pegava telefone celular. Ele me falou que viria para Boa Vista para me levar para uma festa num destes garimpos no Rio Uraricoera. Assim ele veio e eu contei tudo o que havia acontecido na Guiana e no Suriname e ele pediu para eu não fazer mais negócio com a Fátima porque ela é uma pessoa perigosa. Então ele falou que era melhor a gente ir morar em Alto Alegre e quando tivesse alguma coisa na Vila do Taiano ou no Paredão, ele encontraria trabalho para nós duas. Mas, minha amiga não quis ir com a gente.  Assim, no início de 2018 fui morar em Alto Alegre com meu irmão. Mas, ele vivia nos garimpos dando assistência mecânica para as máquina e só vinha em casa a cada 2 ou três meses. Ele me levou numas festas que os garimpeiros realizam em certas ocasiões. Não sei se era comemoração de alguma coisa ou se era apenas para distrair os homens. Nunca entendi isso. Quando eu viajava com ele para estas festas, no geral ele me falava que eu iria para cozinhar ou ajudar na preparação do local. Mas, chegando lá, ele me apresentava para o encarregado como sua amiga, nunca dizia que era sua irmã. Aí eu entendia o código. Ele sumia para os garimpos e só voltava para me levar na segunda ou na terça-feira, depois que a festa acabava. Acho que ele não queria me ver com os homens. Acho que para ele era difícil admitir que levava a própria irmã para esse tipo de coisa.

No final de 2018 eu comecei com muitas infeções urinárias. Vivia com tratamentos. Foi nesta época que eu conheci o pessoal da Pastoral da Paróquia de Santo Isidoro. As irmãs começaram a me ajudar com os tratamentos. Era um pessoal muito legal e pela primeira vez eu me sentia acolhida e respeitada. Eu nunca contei a elas a minha vida na prostituição. Mas, no fundo, elas sabiam que quando eu falava que ia viajar para as vilas, sabiam que era para isso. Mesmo assim, nunca me negaram atendimento e acompanhamento. Elas me ensinavam fazer remédios e chás caseiros que aliviavam as infecções.

Um dia meu irmão me ligou de novo da “fofoca do cavalo” e me falou que teria uma festa grande numa fazendo de gente que ele conhecia e perguntou se eu queria ir. Eu estava bem de saúde e acabei aceitando. Uns amigos do meu irmão passariam por alto Alegre e me levariam porque era um lugar bem longe e bem difícil de chegar. Saímos de madrugada e viajamos por umas vicinais o dia inteiro até que chegamos numa fazenda. Era a sede de uma fazenda, onde estavam dando uma festa para gente da política. Tinha muita gente importante chegando até de avião. Havia outras garotas que chegaram para a festa. Tinha muita bebida e muita droga. Colocaram alguma coisa na minha bebida e quando acordei havia uns 10 homens em cima de mim. Foi uma noite muito difícil e achei que não sairia viva porque eles estavam muito alterados com tanta droga. Não eram garimpeiros. Eram políticos que haviam ido para a festa. Mas, não sei o nome de nenhum deles. Eu só queria que aquilo terminasse. E fiquei desesperada ao perceber que eles não usavam camisinha. Eu tentava reagir, mas, não conseguia. Me deram mais bebida e eu apaguei de novo. Já era perto de meio dia quando o amigo do meu irmão apareceu e me ajudou a levantar, tomar banho e me vestir. Minha cabeça parecia que iria explodir. Eu percebi que estava com um corrimento e sentia muitas cólicas. Me levaram de volta para casa e me pagaram 500 reais. Achei que era muita humilhação, mas, não estava em condições de rejeitar e sabia que era aquilo ou nada.

[1] Além da prostituição, a aliciadora trabalha como encomendeira que é a pessoa que recebe dinheiro ou ouro para levar de volta mercadorias para os gerentes ou encarregados dos garimpos.