Violência nos garimpos da Amazônia na narrativa de Maugê – 1

12
Feb

Eu gosto de falar da minha vida. Ainda sou jovem, mas, vivi muita coisa[1]. Fui da riqueza à pobreza extrema, a ponto de estar pedindo ajuda para tratar esta doença. Eu nasci em Ciudad Guayana, capital do Estado Bolívar. Minha família tinha boas condições de vida. Meu pai era mecânico de avião e trabalhava para grandes mineradoras na região do Rio Orinoco. Minha mãe tinha um hotel luxuoso bem próximo ao aeroporto. Até os 15 anos eu fui tratada como uma rainha. Tive boa educação, estudei nas melhores escolas e desde os 08 anos tinha motorista particular para me levar todos os dias ao colégio Loyola, em Puerto Ordaz, onde me preparava para ingressar na Universidade Católica Andrez Bello, importante centro jesuíta onde estudava a elite da cidade.

Aos 15 anos conheci um amigo do meu pai, o Júlio. Ele era engenheiro de aviação, igual meu pai e ganhava muito bem naquela época, tinha seu próprio avião e fazia viagens para levar encomendas de peças mecânicas nas mineradoras nos finais de semana. Ele tinha 35 anos e estava se separando. Foi meu primeiro homem e meus pais sabiam. Com 16 anos fomos morar juntos e logo nos casamos. Fui mãe aos 17 anos, minha filha está agora com 10 anos e mora com os avós paternos na Espanha desde mito pequena. Faz 8 anos que não a vejo, somente por foto e às vezes por videochamadas.

Em janeiro de 2012 meu pai teve um acidente vascular cerebral e veio a falecer. Eu estava na clínica para ter a minha filha e não pude ir ao velório do meu pai. Meses depois, minha mãe teve que entregar o hotel, mergulhada em dívidas. Meu irmão mais velho tentou continuar o negócio do meu pai na oficina de mecânica de aviação, mas, começou a dar mais prejuízo que lucro. Foi quando minha mãe foi morar na Espanha, no final de 2013. Em janeiro de 2014 meu marido sofreu um acidade de avião numa das viagens que fazia na região do Rio Orinoco e morreu. O avião s incendiou e não e não estava no seguro. Eu fiquei sozinha, viúva aos 18 anos e fui morar com os meus sogros para me ajudarem com a bebê, mas, não nos dávamos muito bem. Eles diziam que eu era muito imatura. De certa forma eles tinham toda razão. Eu queria estudar, passear, ir a festas e discutíamos muito porque eles não aprovavam este meu comportamento. No final de 2014 eles me avisaram que iriam se mudar para Barcelona, na Espanha e me fizeram a proposta de levar a bebê com eles porque era a única lembrança que eles tinham do filho único. Eu concordei e no ano novo de 2015 eles partiram com minha filha Maria Alicia. Foi a última vez que abracei minha filha que eu ainda amamentava quando foi separada de mim. Eu senti muito a falta dela. Entrei em depressão, comecei usar remédio para dormir, bebia e fumava para esquecer.

Em julho de 2015, meu irmão me convidou para morar com ele na antiga casa da minha mãe. Logo nos primeiros dias ele me falou que estava levando peças de reposição de máquinas para garimpos nos arredores de El Callao e eu comecei a viajar com ele para ajudar na logística das viagens pela Troncal 10. Logo na primeira viagem conheci um bar no centro da cidade que estava com uma vaga para dançarina de polidance. Falei com meu irmão e ele disse que precisávamos de dinheiro e que por ele, não havia problema eu trabalhar ali. Ele sabia que nos fundos do bar funcionava um prostíbulo e que logo eu estaria fazendo programa com garimpeiros. Mas, parecia não se importar, já que a necessidade de dinheiro era maior.

Assim eu comecei na prostituição. Logo na primeira semana de trabalho como dançarina, fiz meus primeiros programas nos fundos do bar. As meninas pagavam um taxa para o dono do bar cada vez que usavam os quartos para atender os clientes. Durante a semana era um preço e nos finais de semana era o dobro. Às vezes recebiam em dólares, mas, na maioria das vezes exigiam pagamento em ouro. Eu não tinha muita noção dos valores. Quase tudo que eu ganhava nos programas, pagava nas taxas e nas roupas que precisava.

Os negócios não iam bem para meu irmão e ele começou a ficar mais tempo nos garimpos dos “brasileiros” no povoado Las Claritas ao sul do estado. No início de 2016 ele me chamou para ir junto com ele porque haveria uma festa e eu poderia ganhar um dinheiro extra no polidance. No fundo ele sabia que eu ganhava mesmo era com os programas. Ficamos lá uma semana depois da festa, mas, estava muito difícil, muitos garimpeiros indo embora, conflitos com os indígenas dos arredores, muita violência e pouco dinheiro. Foi quando meu irmão conversou com uns amigos brasileiros que o chamaram para trabalhar nos garimpos do lado brasileiro. Estávamos quase sem dinheiro, mas, conseguimos pagar a passagem até Boa Vista. Aqui o dinheiro acabou de vez. Ficamos na casa deste amigo do meu irmão uns dias, mas, não deu certo. A esposa dele é evangélica e quando descobriu que eu fazia programas, pediu para eu ir embora no mesmo dia.

Meu irmão tinha ido para um destes garimpos e eu não tinha para onde ir. Acabei morando na rua, nas proximidades da rodoviária. Era tempo de chuva e foram dias muito difíceis. Até que conheci uma amiga que me convidou para morar com ela num quarto alugado no Bairro Pricumã; ela fazia programa e eu comecei a ir com ela para a “praça”. Nas primeiras semanas só ganhei o suficiente para ajudar com as despesas do quarto. Nas semanas seguintes foi melhorando. Logo percebi que a “praça” estava muito disputada e saturada com a chegada das venezuelanas e brasileiras que retornavam dos mesmos garimpos e pelos mesmos motivos que eu.

A gente dormia um pouco durante o dia e perto das 5 horas da tarde íamos para nosso ponto atrás da Feira do Passarão, no bairro Caimbé, na rua Ivone Pinheiro. Outras vezes íamos para um dos bares e lá mesmo conseguíamos clientes. Mas, tinha noites e até semanas que mal conseguíamos para comer. Foi num destes bares do Passarão que conhecemos a Fátima. Uma conhecida cafetina de garimpo. Ela nos falou da possibilidade de levar a gente para trabalhar em Lethen, na Guiana Inglesa. Mas, não era para ficar morando lá. Era para ir atender os garimpeiros num determinado local e voltar para Boa Vista.

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[1] A entrevista com Maugê faz parte das pesquisas de campo realizadas no Consórcio de Pesquisas que reúne o Observatório das Migrações em Roraima (OBMIRR/UFRR), o Instituto Conviva e a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM). A entrevista foi realizada na sala 53 do Centro de Ciências Humanas (CCH/UFRR). Na ocasião a participante buscava apoio financeiro para tratar um câncer de Colo do Útero em estado avançado. Na conversa sobre a campanha, Maugê, quis narrar sua história e autorizou, via assinatura no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o uso de sua narrativa para fins de pesquisa.

[2]  Maugê é o apelido com o qual ela quis ser identificada nesta narrativa. Está relacionado a Maria Eugênia. Mas, ela não quis dizer o sobrenome, nem tampouco é objeto desta pesquisa que procura manter os participantes no anonimato para garantia da confidencialidade.