Violência nos garimpos da Amazônia na narrativa de Maugê – 3

19
Feb

Meu irmão retornou do garimpo e eu contei para ele o que havia acontecido. Ele parecia muito revoltado, mas, não quis conversar sobre o assunto. Disse que eu precisava esquecer e tocar a vida para frente que era assim mesmo. Ele me falou que estava pensando em me levar para ficar com ele na “fofoca do cavalo” para eu receber as peças enquanto ele estava dando assistência nas redondezas. Mas, ele disse que estava com medo de me levar porque era perigoso para as mulheres. Eu não entendi bem, mas, fui com ele. Chegamos a uma comunidade do povo Yanomami chamada Helepi. Neste lugar, que era também uma espécie de passagem obrigatória de garimpeiros, um pastor evangélico avisou que não era para seguir viagem porque mais cedo havia passado gente da polícia para fazer alguma investigação. Então, passamos a noite no barco. De manhã, no Porto do Arame, cobraram pedágio do meu irmão. O encarregado disse para meu irmão que daquela vez não queria dinheiro nem ouro. Então entendi que era comum pagar pedágio naquele lugar. Meu irmão foi conversar com ele na beira. Ele olhou para mim e pediu para eu acompanhar o homem até seu alojamento. Eu fui chorando porque não queria, até aquele momento, acreditar que meu irmão estava me entregando para a prostituição. Enquanto servia àquele homem, fiquei pensando como devia ser difícil para meu irmão fazer isso comigo. Mas, depois que terminou e eu voltei para o barco com ele, vi que ele não queria me olhar nos olhos e evitou falar comigo por toda aquela longa viagem. Em muitos lugares tínhamos que descer e empurrar a lancha por causa das pedras ou bancos de areia. Também tinham muitas galhadas nas beiras do rio. Foi uma viagem demorada muito difícil. Até que chegou um momento que eu criei coragem e perguntei, “Pacho, o que eu vou fazer realmente neste lugar?”. Ele apenas me disse: “qualquer coisa”. Então entendi que ele estava me levando para a prostituição. E entendi que para ele não fazia diferença eu ser sua irmã ou uma mulher qualquer. Mais cinco pessoas viajavam com a gente na mesma voadeira, todos rapazes jovens que já frequentavam o garimpo. Eles conversam comigo e me contavam suas aventuras. Mas, eu não conseguia tirar aquela coisa da cabeça. Meu irmão estava me levando para prostituição.

Chegamos numa quinta-feira à noite. Eu estava muito cansada. O corpo inteiro doía e sentia um pouco de febre. No alojamento do meu irmão só havia homens. De manhã percebi que havia poucas mulheres no local. Meu irmão apenas me orientou que eu tivesse muito cuidado e que reagisse à qualquer perigo e que gritasse por seu nome. Ele desceu novamente de lancha para entregar as peças que havia comprado em Boa Vista. Me disse que se alguém pedisse para eu cozinhar, era para fazer. Não demorou um rapaz pediu se eu faria o almoço que ele pagaria para mim. Então aceitei. Quando comecei preparar, tudo no improviso, mais uns três pediram para fazer comida para eles também. Fiquei animada e pensei que poderia ganhar a vida assim, fazendo comida para eles. Muita gente morava nesta “fofoca”. Tinha rádio e uma torre com internet. Mas, logo vi que meu celular não funcionava. Tinha um lugar onde matavam gado e porco e vendiam as carnes ainda frescas. Em outro lugar vendiam cebola, alho, enlatados e outras comidas brasileiras. Mas, era muita lama, os alojamentos de lona, tudo improvisado mesmo. No final do dia os homens iam chegando para tomar banho, comer e descansar. Chegavam todos enlameados, da cabeça aos pés. Ligavam o gerador para as lâmpadas e para os rádios. A noite de sexta-feira foi ficando animada. Meu irmão chegou de noitinha e disse que não era seguro eu ficar na casa dele porque só havia homens nos arredores. Disse que havia falado com uma amiga para eu ficar na casa dela. Era a Adelaide. Logo ela foi me dizendo que a noite iria ferver e que eu precisava me arrumar. Então, entendi que era um prostíbulo. Não demorou os homens começaram chegar trazendo bebida. Adelaide também fornecia drogas para eles. Logo apareceu o primeiro cliente e me levou para o quarto. E veio um segundo, um terceiro, um quarto… e eu já nem consegui mais contar, por causa de tanta bebida. Mas, a Adelaide contava um por um e recebia deles.

No sábado de manhã procurei por meu irmão e disseram que ele havia descido o rio na madrugada. Adelaide apareceu e pediu para acertarmos a noite. Me explicou que para ficar trabalhando com ela, teria que pagar uma parte dos programas para ela. Eu estava ainda meio tonta e expliquei que não estava em condições de negociar e que precisava descansar. Ela, porém, disse que a casa dela não era pensão e que para ficar com ela, eu teria que ajudar na limpeza da casa, na comida e assim por diante. Mesmo cansada, trabalhei o dia todo.

No final da tarde começou a chegar os homens e logo a casa estava lotada. Não sei em que altura da noite, me dei por conta que estavam uns 10 homens de novo em cima de mim. Eu tentava pedir socorro, mas, não conseguia. De manhã estava arrebentada de novo. Fui conversar com a Adelaide e ela me disse que era assim mesmo. Que tinha que me acostumar. Que os homens gostavam de fazer sexo grupal. Então eu disse para ela que aquilo era estupro. Ela se calou e não quis dar continuidade à conversa. No domingo à tarde tudo se repetiu. Eu ainda não havia me recuperado da noite anterior. Mas, tive que dar conta de mais uns 10 clientes da Adelaide.

Na segunda-feira percebi um corrimento muito forte e muitas dores. Comentei com a Adelaide. Ela fez um caldeirão cheio de chá e pediu para eu tomar o dia inteiro. Nos outros dias ela repetiu a mesma coisa. Nestes dias não apareceu cliente na casa da Adelaide. Na quinta à noite ela me perguntou como eu estava e eu disse que continuava o corrimento com um pouco de sangramento. Então ela foi dispensando os clientes que apareciam. Ela nunca falava de pagamento. Eu via os homens pagando para ela pelo programa. Mas, ela não me falava quanto me pagaria e nem se me pagaria. Eu tinha medo de perguntar. As semanas foram passando. Quando o corrimento diminuía, ela avisava os clientes e a casa ficava lotada de novo.

Passados quase um mês, meu irmão retornou. Então eu contei para ele sobre o sangramento e as dores. Ele foi perguntar para a Adelaide se os remédios dela (os chás) não funcionavam. Então ela disse para ele que poderia ser uma coisa mais grave e que procurasse tratamento. Meu irmão havia planejado uma viagem a Boa Vista, mas, não tinha intenção de me trazer. Então, vendo minha situação, mudou de planos e resolveu me trazer. Me deixou em alto Alegre e seguiu para Boa Vista para comprar as peças que precisava.

Eu fui logo procurar por um médico. No posto de saúde, logo me encaminharam para o hospital. Logo que contei o que estava acontecendo, providenciaram os exames. Quando chegou o resultado eu levei de volta ao médico. Ele balançou a cabeça e falou “vá para Boa Vista se tratar”. Eu fui falar com o pessoal da pastoral. Eles me ajudaram com as viagens e com os tratamentos. Em Boa Vista, fiquei no quarto com minha amiga Juliana no Pricumã. Ela me acolheu e me ajudava toda vez que tinha retorno com o médico. E assim o tempo foi passando. O tratamento parecia funcionar, mas, quando menos esperava, viam as dores e o sangramento. Até que comecei a ter febre. Foi quando o médico me chamou e disse que eu tinha câncer em estado muito avançado e que não tinha muito o que fazer aqui em Boa Vista. Num final de semana consegui falar com meu irmão e contei a ele tudo o que estava acontecendo. Então ele veio para Boa Vista e fez contato com um colega do garimpo que era de Goiânia e estava retornando para lá. Então ele conseguiu comprar a passagem para tentar um tratamento especializado[1].

[1] Dias depois, por contato telefônico, Maugê, informou que conseguiu viajar para Goiânia para o tratamento do câncer e que estava bem. No final de março tentamos novo contato telefônico para saber sobre seu tratamento e a pessoa que atendeu o seu telefone comunicou seu falecimento no final do mês de março de 2021. Desde então, não conseguimos mais nenhuma informação.